PREÂMBULO

Em 2006, a Laboratoires PF comprou a empresa brasileira Darrow Laboratórios, especializada em produtos oncológicos e dermocosméticos, desenvolvendo assim sua presença no continente sul-americano por meio do Brasil, um país de 182 milhões de habitantes, na época o 7º maior mercado mundial de dermocosméticos e o 11º maior mercado farmacêutico.

Com esse investimento, o visionário fundador e CEO comprou no estado do Rio de Janeiro sua futura plataforma industrial e comercial para toda a América Latina.

Infelizmente, a partir de 2013, tanto a visão estratégica do fundador quanto seu interesse nessa futura plataforma se perderam, ao mesmo tempo em que a alma do Monsieur Pierre Fabre desapareceu.

Aqui, finalmente, muitos anos depois, está a história de uma experiência maravilhosa que tive no Rio de Janeiro como parte desse evento, e que conto aqui sem nenhuma concessão.

A CAMINHO DE TRES RIOS

Longe da pequena cidade de Cambounette sur le Sors, a unidade de produção brasileira não recebia mais toda a atenção necessária para se desenvolver harmoniosamente; aos poucos, ela se mostrou não rentável aos olhos dos financiadores na França, que sugeriram vendê-la quase 10 anos após sua aquisição.

Assim, em 2014, fui contratado por dois anos por um certo P.J. para liderar o projeto “Transformação Industrial e Logística da PF do Brasil”.

As prioridades do projeto incluíam o fechamento da unidade industrial de Três Rios, a transferência da produção para um fabricante contratado na região de São Paulo e a construção de um novo centro de distribuição…

Tudo no Brasil se tornaria mais fácil, mais suave e mais barato para essas operações… como em um sonho.

Desde a primeira reunião do projeto, na França, bem longe do teatro de operações, fiquei intrigado com o comportamento e o discurso do meu sponsor. Além da falta de lucratividade da fábrica, parecia haver um bom número de gerentes e diretores ineficientes no local, dos quais seria útil me livrar o mais rápido possível, em benefício do progresso.

Além dessa visão altamente subjetiva das pessoas, eu também achava difícil entender por que a divisão de Medicamentos, que ocupava parte da fábrica, era ostracizada em favor da divisão de Cosméticos, que tinha a maioria.

“A concorrência é fora da empresa, não dentro”, foi o que aprendi e sempre defendi desde meus dias na Smithkline Beecham.

Com o passar das semanas, percebi que esse comportamento era guiado, acima de tudo, por considerações puramente políticas, as quais, posteriormente, tive muita dificuldade em combater.

Quando chegamos no Rio, em maio de 2014, começamos a trabalhar com as equipes locais para identificar consultores especializados em buscar compradores para a fábrica, foi feito contato com a CMO da Fareva para cotar nossos produtos, Assuntos Regulatórios e Compliance se ocuparam com a transferência da produção, o RH se preparou para agir por sua vez, e eu gradualmente implementei todas as dimensões do projeto, seus aspectos de distribuição e sistema de informações (Dynamix), etc.

As negociações com a CMO se mostraram cordiais, exceto pelo fato de que as economias esperadas não se concretizaram. No final, os preços de custo à saída da fábrica não estavam longe de ser competitivos.

As esperanças de um novo modelo de operaçãoes lucrativo desapareceram como pedras de gelo sob o sol de Copacabana.

Nas entranhas da fábrica, na época, ficava o centro de distribuição de todos os produtos para o Brasil. Com o fechamento da fábrica, seria necessário construir um novo centro de distribuição, um almoxarifado para estocar os produtos importados que aguardavam liberação e um novo laboratório de controle de qualidade para as mesmas importações

REVIRAVOLTA

Portanto, decidi organizar um comitê de pilotagem do projeto, a fim de defender uma nova estratégia, que era manter o site, com novos investimentos que o colocariam de volta nos trilhos, incorporando gradualmente produtos importados.

Sentindo que a maré estava mudando, nosso Patrocinador relutantemente tomou essa nova direção, contra a corrente de sua própria visão, ambição e cegueira.

Nesse meio tempo, morando no Rio de Janeiro, tive tempo de conhecer a fábrica de perto e descobrir o enorme potencial que ela de fato revelava, a começar por seu potencial humano.

Bastou uma conversa nas linhas de produção com os operadores, uma visita às almoxarifados e laboratórios etc. para ver a luz, o desejo de fazer as coisas bem feitas, de progredir – em suma, de viver com paixão.

Só tive essa sensação uma outra vez em minha vida industrial. Foi nos anos 90, na Smithkline Beecham, em Mayenne. A Beecham e a Smithkline tinham acabado de se fundir, e uma onda de reestruturação industrial estava no horizonte. Quando Jan Leschly, o CEO da empresa, chegou a Mayenne e, junto com Vic Boddy, o diretor industrial na época, nos levou para um tour pelas instalações, a impressão deixada nele pela equipe foi tal que as fábricas de Mayenne acabaram sendo as grandes beneficiárias da reestruturação.

Tudo estava me afastando da visão obscura da gerência local que havia sido descrita para mim na França quando nos conhecemos. Definitivamente, para cumprir essa missão adequadamente, era preciso, antes de mais nada, amar e tentar entender esse país, seu povo e sua cultura, e esquecer um pouco seu próprio centro de gravidade.

IMPORTADOR/DISTRIBUIDOR

Em seguida, entramos gradualmente em uma nova fase do projeto, a interessante fase de construção de um novo modelo baseado na produção local.

Para garantir o futuro de longo prazo do local, inevitavelmente tivemos que aumentar os volumes de produção, investir em novos equipamentos e, portanto, liberar espaço.

A decisão lógica foi tomada para transferir o centro de distribuição para fora do local.

O proprietário do terreno em frente à fábrica ofereceu-se para construir o novo armazém no local, e um novo centro de logística pronto para nos receber estava sendo construído a poucos passos de distância. Estudos aprofundados realizados pela Djagma demonstraram os benefícios fiscais e financeiros dessas duas opções. No entanto, a decisão do patrocinador foi optar por um local no Rio de Janeiro, no já famoso bairro da Pavuna, com um parceiro logístico argentino, a Adriani.

O que a alta direção da empresa, a 9.000 quilômetros de distância, poderia entender sobre a reputação sulfurosa do bairro da Pavuna, onde os caminhões viajam sob escolta armada?

Minha posição em relação ao meu Patrocinador já havia sido muito prejudicada pela minha luta para manter o local industrial em funcionamento, bem como pela minha recusa sistemática em me envolver em sua disputa política entre Cosméticos e Medicamentos, por isso decidi não abrir uma nova frente de dissidência sobre o tema da distribuição.

Eu sabia que havia outra questão muito mais importante no horizonte e achei que poderia vencê-la com a ajuda das equipes locais.

Para liberar mais espaço para a produção de cosméticos, foi necessário remover da fábrica os poucos medicamentos menores que ainda estavam sendo fabricados lá. Como a divisão farmacêutica da empresa tinha poucos argumentos contra isso, o gerente de projetos francês propôs liberar o local de todas as atividades farmacêuticas, inclusive as do laboratório de controle e análise.

A consequência dessa decisão foi a mudança do status da empresa no Brasil de “produtor, distribuidor e importador” para “importador e distribuidor” de medicamentos.

Essa pequena mudança no status da empresa, na verdade, escondia uma consequência essencial: para poder continuar vendendo medicamentos no país, as regulamentações da Anvisa exigiam que a filial brasileira adquirisse um novo almoxarifado para os medicamentos importados e, acima de tudo, um novo laboratório de controle completo.

Assim, com a equipe do Rio, comecei a buscar instalações para o que chamaríamos de “PFM Hub”, bem como um arquiteto para avaliar o custo do investimento e colocar as instalações em conformidade.

Custo de pronto uso, equipe treinada, novos equipamentos adquiridos e validados, processos validados e operacionais: 1 milhão de euros.

Em vista do tamanho do negócio de medicamentos da empresa no Brasil, essa soma naturalmente parecia titânica para todos. No entanto, o diretor de projetos francês não teve dificuldade em defender esse cenário para seus superiores, sob o pretexto de que essa seria a única maneira de a divisão de medicamentos permanecer presente no mercado brasileiro.

Eu sabia que isso não era verdade, mas não tínhamos autorização para falar sobre o assunto.

Meus contatos locais na QRVI Quality Regulatory Vigilance and Information me disseram que a Anvisa muito provavelmente concordaria em deixar o atual laboratório de controle de medicamentos em uma fábrica, mesmo que só produzisse cosméticos lá.

O assunto permaneceu tabu até que, por acaso, recebemos a visita do presidente da divisão de produtos farmacêuticos do grupo. Eu o conhecia muito bem, pois ele havia sido meu chefe por vários anos quando cheguei à França nos anos noventa. Ele gentilmente me cedeu uma das duas noites que passou em solo brasileiro naquela época. Durante um jantar a dois, em que fiquei emocionado com a precisão dos detalhes que ele lembrava do tempo que passamos em Mayenne, há tanto tempo, revelei a ele a existência de um plano B que simplesmente teríamos que apresentar na Anvisa.

No dia seguinte, fui solicitado a enviar o dossiê às autoridades sanitárias. Então fui à Anvisa com uma amiga querida da QRVI; a Anvisa aceitou nosso pedido algumas semanas depois.

Hoje, o laboratório de controle ainda está localizado em uma fábrica que produz apenas cosméticos, e a empresa conseguiu economizar um milhão de euros.

EPÍLOGO

É claro que eu estava feliz e orgulhoso do resultado, pois tinha ido até o fim de minhas convicções e meus valores para o benefício maior da empresa à qual eu estava servindo.

É claro que o Sr. P.J. não me perdoou pela liberdade que me guiava durante todo esse projeto.

Convocado apenas alguns dias antes do Natal, ele encurtou minha missão em alguns meses.

Apesar do grande momento de solidão que se seguiu, e onde não busquei nem recurso, nem ajuda, nem agradecimento, a ovelha negra que sou, partiu novamente para novas aventuras que mais tarde me levariam a Bruxelas, Boston, Orleans e… Rio de Janeiro.

EMMANUEL de Ryckel

PS. Quando escrevo estas linhas, continuo acompanhando o desenvolvimento dessa fábrica ano após ano, e seus produtos estão finalmente começando a chegar a outras partes da América Latina. Ainda vou ao Rio de Janeiro duas ou três vezes por ano e, a cada vez, tenho o prazer de encontrar algumas das pessoas que conheci naquela época. Outro dia, por exemplo, em um restaurante em Ipanema, fui abordado por uma jovem e bonita mulher, Caroline, que na época era responsável pelo desenvolvimento de novos produtos e que agora é responsável pela produção.

À distância, a Pavuna continua tão pouco frequentada como sempre, e o custo do seguro segue a mesma tendência, confirmando o absurdo da decisão.

Em outro dia, ao longe, enquanto eu esperava na beira de um rio, vi passar o espectro do homem conhecido como PJ, que havia esperado em vão pela promoção que ele achava que merecia na divisão de cosméticos da empresa e que deixou a empresa.

Mais uma vez, ele confirmou a realidade da metáfora de Lao Tsé que um diretor industrial de quem eu gostava me disse certa vez: “Se alguém o ofendeu, não se vingue. Sente-se à beira do rio e logo verá seu cadáver passar. “

E assim, os vestígios de sua imagem ainda gravados na minha memória passaram, e eu continuotodos os dias a olhar diretamente em seus olhos, diretamente em seu coração, as almas incríveis  que ele havia prejudicado nessa maravilhosa aventura.

Para Alex, Ingrid, Bianca, Hervé, Pedro, Juliana, Caroline, Otávio, César, Luciana, Mônica, Yves, Renata, Fábio, Françoise, Christophe, christobald , Louise, Érika, Monise…